domingo, 26 de fevereiro de 2017

O esplendor das palavras
queimava no escuro
e sabíamos o lugar
onde o perigo
ameaçava. Dentro de ti
o caos,
a festa dos sentidos
encobria o desamparo.


Isabel de Sá, in  O Brilho da Lama, & etc, Lisboa, 1999

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

A flor ainda viva junto ao verde. Um homem idoso curvado sobre a terra trazia musgo nos dedos e um caracol novíssimo suportava a luz.


Isabel de Sá, in Nervura, Mirto, Porto, 1984
O PRINCÍPIO DA REALIDADE


Se a arte
não for insubmissa
se não permanecer
desobediente
e não escapar ao controlo
é o quê?


Se a arte
não for insurrecta
se não permanecer
pedra viva escaldante
é o quê?
a arte
se não disser Eu Sou?


Isabel de Sá, in revista Brilho no Escuro nº2, Setembro. 2009
TRAGÉDIA E PARAÍSO SEMPRE


O poder redentor das palavras
bala no coração até ao fim
mineral escondido no poço
escuridão no olhar dos amantes.


Crianças vestidas de beleza
estrada cega de luz.


Heróis amarrados a si próprios
rio parado no lodo
tirania do desejo ou privação
a loucura brilhando no rosto.


Isabel de Sá, in revista Brilho no Escuro nº2, Setembro. 2009
LONGA É A NOITE


Quando me vou embora
não sei. Peço-te
só um murmúrio
mostra-me o rosto.


Quando me vou embora
a infância foge.
Aquela última vez
à procura do fim.


Peço-te
só um murmúrio
mostra-me o rosto
fala-me de suicídio
para que possa chorar.


Isabel de Sá, in revista Brilho no Escuro nº 2, Setembro. 2009

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

NÃO SE PASSA NADA


Nada de cinismo
a vida é boa
ainda não há guerra
nem peste nem fome.


Ninguém cospe no teu rosto.


O fruto cai da árvore
a fêmea é fértil
o macho vigoroso
as crias alegram o prado
e o sol brilha brilha.


A ciência não pára
de nos surpreender
e dar conforto:
nascer crescer ser velho
e falecer. Moléculas
átomos e neutrões
amparam-nos na queda
dizem-nos o que é o amor.


O amor também é feito
de vermes e bactérias.
A sua chama
transforma os nossos corpos
na mais bela cinza.


Isabel de Sá, in O binómio de Newton E a Vénus de Milo - Antologia. ALETHEIA Editores, Lisboa, Novembro. 2011
SIMBIOSE CHEIA DE GRAÇA

Os perdidos
aqueles sem compromisso
perturbam a ordem
assustam os rastejantes.
Esses verdadeiros heróis
bebem o ácido
e comem detritos
crentes na glória.


Existem os outros
os sustentados
no círculo delirante
acorrentados à ficção da espera.
Cortesãs de secretária
expostas ao ofício
aos caprichos da clientela.


E o terror do desamparo?


O escravo tem acesso ao tapete do senhor
à sua cama. Talvez ao seu olhar.
Também será aquele que não existe
mas é a presença.


"Estás destinado à beleza.
Nunca verás a luz."
- palavras do senhor.
A beleza é então treva
escuridão sem fim?


O rebanho encontra o pastor
virtuoso
cheio de encantos.
Renuncia à tempestade
aceita a provação e a caridade.
O rebanho cumpre. Na sombra alimenta o ódio.
Abismo e esplendor perpetuam o idílio.


Ninguém sabe como vai acabar.
A voz da paixão é alienante
e todos caem.
Entretanto a noite desce
arrasa tudo:
personagens
ilusão e romance.


A roleta da fama atormenta os mortais.
Escapam à miséria do anonimato.


A velhice?
Queremos para sempre
o luxo de uma pele jovem
coração vermelho vivo.


Sabia-se o caminho
havia um farol
a cruz o fim do túnel.
Entretanto o caos alastra.
Reconhecer que algo vai mal
visão do outro lado
o assunto percorre um longo caminho
ninguém entende a espera.
Ninguém quer ser Nada
pensamento em desordem ou até alucinado.
Reconhecer que está mal é paleio.
As vozes ouvem-se a si próprias
neste sistema esquizofrénico.


Vale a pena usar poucas palavras
ler e reler
ficar dentro das ideias no escuro pensamento.
A paisagem é verdade ou  mentira?
Segredo é não saber de que lado sopra o vento.
Coitados dos sonhadores
vivem à margem do dia e da noite
longe de tudo.


Compra-se o futuro
o cartaz
e também o microfone.
Quanto tempo é que isto vai durar?
Parece magia
temos de enfrentar a dor
o sofrimento
quando nos cruzamos na rua
talvez em frente ao espelho
ou diante da porta trancada.


Isabel de Sá, in revista Brilho no Escuro nº1, Junho. 2009
Juventude e beleza, também
decadência e devassidão. Tudo
é possível por ser interdito.
Homens de fogo, mulheres de lama.


Saíram do mundo para a minha pasta
forrada a papel de fantasia.


Usam ligueiros, pénis
e soutiens. Máscaras e luvas.
Há zonas no corpo enegrecidas
pelo chicote. Amam-se, fornicam.
Exibem o ódio, a quase demência
de um mundo maldito.


Isabel de Sá, in O Brilho da Lama, & etc, Lisboa, 1999
Ela vestia-se de oiro branco e ficava quieta fascinando a morte.
Eu era o adolescente de coração atento a mínimos rumores. A criança de fria espada.
Devorava-lhe o seio, deixando-a imersa em pensamentos fixos, vagamente a sorrir.


Isabel de Sá, in Restos de Infantas, Ulmeiro, Lisboa, 1984

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

As coisas que nos acontecem no contacto com os nossos semelhantes têm vindo a fazer parte da escrita, tal como o caos algumas vezes pertence ao meu pensamento. Procuro a íntima fissura onde a alma acabará por dividir-se. Não posso ainda saber de que lado ficarei, "Então serei um eco e uma sombra"*, viverei a dúvida até que um sinal me ilumine a razão.



Isabel de Sá, in Escrevo para Desistir, & etc, Lisboa, 1988

*R. D. Laing, O Eu Dividido, Editora Vozes, Petrópolis, 1978, pág. 187 (verso de um poema de um esquizofrénico)
A BELEZA DAS TÚLIPAS


Agora que a chuva cai
sobre a tarde quase morta
e alguns poemas de Kavafis
se tornam dilacerantes,
reparo na beleza das túlipas
inclinando-se.


Poderia fazer um desenho
mas se por vezes apetece
desistir.


Os versos do luto,
a minha adolescência
tão cheia de raparigas.


Isabel de Sá, in Erosão de Sentimentos, Ed. Caminho, Lisboa, 1997

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Quando o estranho fio do prazer se desprende
 e o olhar parece a doce cinza da lua


Quando infantas bailam em redor de árvores
e a infância vem inteira


Quando a voz delicada de outros homens
aparece longínqua e diluída


Quando lembro o riso de púrpura
e esmago uma violeta em teu braço


Esse afecto abrasa-me e procuro
no corpo minúsculo coração nascente.


Isabel de Sá, in Bonecas Trapos Suspensos, Frenesi, Lisboa, 1983
A LUZ DO ESTÚDIO


Ao observar o retrato
de Oscar Wilde e do amante,
reparo na luz do estúdio
entrando na fotografia
que fixou a figura
de dois belos homens.
Fecho o livro sobre a mesa,
na jarra preta as flores
unem as pétalas ao cair da tarde.


Isabel de Sá, in Erosão de Sentimentos, Ed. Caminho, 1997

domingo, 19 de fevereiro de 2017


O tempo destrói a pele
e nada ficará. O destino
é a morte de tudo
o que fomos e sentimos.


Deus não existe - é o equívoco
da educação
e o pecado a guilhotina
que os facínoras nos impõem
à nascença. Somos carne
e pensamento.  Resta-nos
o sucesso de viver.


Isabel de Sá, in O Brilho da Lama,& etc, Lisboa, 1999
SECRETO  SUICÍDIO

Olho-te através da poalha  doirada do rosto. Sei que é a primeira vez, que não conhecias a dor desta morte. Digo-te que desistas deste secreto suicídio.
Falas do sentimento que nasceu de um erro e afasto o lençol para ver a cor fulva no centro do teu corpo. És desconhecida de ti.
Não é possível reconhecer a penetração de um corpo. Ninguém sabe exactamente onde o seu corpo penetra outro, nem que parte do espírito é atingida ao fixar um rosto.


Isabel de Sá, in Palavras Amantes, & etc,  Lisboa, 1993

sábado, 18 de fevereiro de 2017

ASSIM VAI O MORTO


Bebo água no calor da tarde,
tu fotografas agora o retrato
daquele que foi suicidar-se a Paris.
Papel vegetal, cartão prensado,
papel de embrulho, um fio.
Assim vai o morto
para uma editora  da capital.
Aqui não há nada, dormir
e comer, um passeio à Foz.
A vida nocturna passa-se nos bares
e na rua os catraios
parecem voar nos carros dos pais.


Isabel de Sá, in Poetas Suicidas, & etc, Lisboa,1993
CONFLITO DE PALAVRAS

É como um laço que me prende a ti, este poema. Nossos corpos vivem de um pacto, de um fabuloso e claro conflito de palavras. Penso nos versos de Keats, a narrativa dissipa as sombras. Não sou quem escreve a minha história. Há um movimento obscuro entre a vida e a arte. "Toda a minha obra não passa de um exercício", afirmação vulgar daquele que escreve. Só o livro interessa, a essência literária do seu corpo.


Isabel de Sá, in O Duplo Dividido, & etc, Lisboa, 1993

Dormirás sobre meu ventre
aí depondo teus receios.


Surgirás em tal beleza, que não mais haverá distinções.
Serás ele. Ela.


Isabel de Sá, in O Festim das Serpentes Novas, Brasília Editora, Porto, 1982

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

IMAGENS

Imagens de seres humanos
bóiam nos rios como bonecos
de plástico. É A VERGONHA
a toda a hora na televisão.
Os soldados abrem valas comuns,
as escavadoras levantam  corpos
que se despedaçam. Não vão esquecer,
nunca mais dormirão como dantes.
O cheiro, os abutres
na berma da estrada  a criança
só que ninguém vê. Deve ser
o fim do Mundo ou o princípio
de qualquer outra coisa.


Isabel de Sá, in Erosão de Sentimentos, Ed. Caminho, Lisboa,1997

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

ELOGIO AO AMOR

Encontraram-se num bar,
uma era escritora e a outra
master em literatura inglesa.
Ambas nascidas no princípio do século,
viriam juntas a celebrar a vida.
Ainda eu não tinha nascido
e elas fixavam residência
na Ilha dos Montes Desertos
para o esplendor e a decadência.
Marguerite preocupada
com o enigmático percurso da vida:
papéis em ordem, placa fúnebre.
Grace
fustigando a morte,
coração queimado pela doença
intrusa.
A privação das viagens foi tormentosa,
a glória e a desolação
foram um só corpo.
É preciso esquecer
que a vida mata e o espelho
reflecte aquilo que somos.
Ficaram as cinzas
no cemitério da Ilha.
DeeDee, a incansável, o ser de excepção.


Isabel de Sá, in Erosão de Sentimentos, Editorial Caminho,1997
NO INFERNO DO AMOR


A poeira luminosa  dos teus olhos espalha sobre mim  um prodígio de palavras. Somos tu e eu no inferno do amor. Na pele macia, nesse corpo onde o amor aprende a ser crescente, o que me atrai  é o desejo de o penetrar em toda a intimidade. Peço-te carícias, procuro a dissipação da dor ao tocar essa pétala de carne. Escrevo o livro onde sabemos existir uma espécie de morte .


Isabel de Sá, in Palavras Amantes,& etc, Lisboa, 1993
                             
Ele era o novo, o único. Trazia no olhar plena brancura, ilusões de fábula.
Caminhava em pó. Oiro. Rapariga se fazia.


Isabel de Sá, in Bonecas Trapos Suspensos, Frenesi, Lisboa,1983

domingo, 12 de fevereiro de 2017

A  FAMA


Deixar que a abertura no muro o degrade até à demolição. Assistir, sem afundar o espírito nesse incidente, agir como se nada tivesse acontecido. Ser capaz de fundir vida e morte num mesmo destino.
A fama confere ao personagem a distinção. Torna-o atraente quando já nada existe, é como um jorro de lama sobre a face.


Isabel de Sá, in O Avesso do Rosto, Editorial Caminho, Lisboa, 1991
Homens de encontro ao muro. Seus corpos desfaziam-se em linhas de poeira. Um homem de encontro a outro homem na beleza da folhagem. As pernas em farrapos de lume.



Isabel de Sá, in Nervura, Mirto, Porto,1984
A elegância da criança em seu gesto solitário.
O sono de jovens escravos.
A hierarquia desfazendo-se em partículas de fogo.
A embriaguez de infantas sem infância, cabeças de safira.
A música fazendo bailar as flores mais débeis.


Isabel de Sá, in Bonecas  Trapos  Suspensos, Frenesi, Lisboa, 1983

Velha e menino passeavam-se pelos jardins do cemitério segurando falos endurecidos e a tarde caía como nos romances.


Isabel de Sá, in O Festim das Serpentes Novas, Brasília Editora, Porto,1982
Ao rapaz que amava em tempo de ser homem guardo uma utopia: dois braços nervosos para lhe acariciar os mamilos, uma cabeça morta, anestesiada de sonho.
 
 
Isabel de Sá, in Esquizo/ Frenia, & etc, Lisboa, 1979
 
 
 
 
 
 
 
                                                           

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

ENFRENTAR A DOR


 



Ao reler os poemas à memória voltam
dias gloriosos, as canções com palavras
simples, a praia, o Inverno e as casas
- exististe em quase tudo e agora
é penosa a separação.
Dia a dia envelhecemos, estou morta
sob a luz da Primavera e não consigo
agarrar a minha vida. Há este abandono,
a sensação de ruína, a ferida implacável
no olhar.
Há o cheiro a relva cortada dos jardins,
a temperatura amena. Passam as horas
dentro da minha morte
executo movimentos contra a inércia,
sei que tenho um ar sombrio
e deixei de existir nos teus braços.


 
 
 


Isabel de Sá, in Erosão de Sentimentos, Editorial Caminho, Lisboa, 1997

Só o lume dos teus beijos rompe
a treva onde a solidão nos mata.
Enrolamos a vida no escuro,
na semente de um amor atribulado.

Conhecemos o ritmo e a sede,
a convulsão do desamparo.
No sentido do corpo, no acerto
desce a força pelos braços
na violenta festa do prazer.

Tudo o que disseste
no desaforo da paixão
só podia incendiar a vida inteira
e encher de esperança o universo.




Isabel de Sá, in Brilho da Lama, & etc, Lisboa, 1999

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

RESTOS DE INFANTAS, Editora Ulmeiro, Lisboa, 1984


Conclusão

Fui amante da morte
e da beleza. Vi a loucura,
acreditei na vida.
Da infância falei
como lugar de abismo.
O prazer
foi também a grande fonte
de perturbação e alegria.
Lembrei as mulheres
que recusaram submeter-se,
escrevi palavras fúnebres.

Não poupei a adolescência,
o coração magoado
e não soube que fazer
de mim fora das palavras.
Escrevi para desistir
e depender
e ter identidade.


Isabel de Sá, in Erosão de Sentimentos, Editorial Caminho, Lisboa,  1997

O AVESSO DO ROSTO, Editorial Caminho, Lisboa, 1991


EROSÃO DE SENTIMENTOS, Editorial Caminho, Lisboa, 1997


EM NOME DO CORPO, Edições Rolim, Lisboa, 1986


BONECAS TRAPOS SUSPENSOS, Frenesi, Lisboa, 1983


Organização do livro por António Fernando Cascais

indisciplinar a teoriaIndisciplinar a Teoria: Estudos Gays, Lésbicos e Queer, Lisboa: Fenda, 2004, ISBN 978-989-603-001-8
Área em grande expansão nas universidades europeias e americanas, e uma das mais inovadoras e estimulantes, os estudos gays, lésbicos e queer são praticamente inexistentes no nosso país. E, sobretudo, mal compreendidos. Iniciativa pioneira, o presente volume reúne textos de reconhecidos especialistas nas suas áreas de investigação, mas que, através do seu contributo, visam o reconhecimento do carácter autónomo e específico deste campo. Além de divulgar o estado da arte entre a comunidade científica e o público português e de promover o conhecimento e o debate das questões levantadas pela reflexão queer mais recente, este livro pretende igualmente inspirar a pesquisa, presente e futura, das realidades da história, da cultura e da identidade gay e lésbica portuguesas, ainda largamente desconhecidas. Eis porque Indisciplinar a Teoria constitui antes de mais uma afirmação: que se impõe dar conta de realidades para que a actual compartimentação disciplinar não se encontra preparada. Tanto bastaria para o tornar num acontecimento no nosso panorama editorial e, doravante, numa referência impossível de ignorar.

Cecília Barreira - Um caso de escrita de orientação sexual em Portugal: A poesia de Isabel de Sá

 
 
 
Até agora nunca se analisou em Portugal a escrita de orientação sexual lésbica porque tudo se increve na feição abrangente de literatura feminina.
Penso mesmo que este silêncio e quase desqualificação da escrita de orientação gay e lésbica passa pela relativa invisibilidade deste fenómeno no panorama nacional. Assim, é mais fácil falar genericamente de uma escrita feminina do que de uma escrita lésbica.
Os pruridos podem ser levantados desde que se identifique um caso de literatura específica e se obtenha da respectiva pessoa autorização para se referir a sua escrita. Desde o pudor até a um certo sentido da invisibilidade, vale tudo.
Isabel de Sá é uma poetisa já consagrada pela crítica literária, mas penso que as metáforas a que a críptica crítica literária habitual não levam a que se descortine uma visão dos conteúdos e das mensagens implícitas dessa escrita.
Falando com a autora, ela considera a obra Em Nome do Corpo aquela em que a orientação de escrita é nitidamente homossexual. As ilustrações de Graça Martins são sugestivas deste universo de diferença. No caso da literatura gay também há um pesado silêncio sugestivo deste clima de insuspeitada maldição de nomeação da diferença.
Mas retornemos ao caso de Isabel de Sá, o mais representativo dessa literatura diferenciadora.
"Era uma mulher sumptuosa, de cabelos levemente ondulados (...) Aproximara de mim o gesto, vigoroso, ao prender-me a mão entre os seus dedos deixando uma impressão de queimadura"
(p.19 de Em Nome do Corpo).
Ou então,
" Morena, de cabelos e olhos negros, ela gostava de seduzir(...) Os corpos abandonavam-se à perturbação, sem cansaço, em gestos repetidos" (p. 21, idem.op.cit.)
A escrita gay e lésbica encontra-se numa situação de não nomeação, porque é inexistente. Existem estudos no mundo anglo-saxónico ou mesmo em França e Espanha sobre essa escrita, mas em Portugal não pode falar-se de tabu porque nem sequer é reconhecível.
Dizer-se que a escrita lésbica se inscreve numa escrita de mulheres ou do feminino, será uma possível abordagem? A escrita heterossexual de uma mulher poderá identificar-se com a escrita lésbica de uma outra? Não serão territórios muito díspares? O estatuto social que é adquirido pela `mulher inteira' , amante, mãe e mulher de corpo total, nada tem a ver com o estigma que se abate sobre esse fenómeno estranhamente intraduzível que é o da homossexualidade feminina.
Um outro aspecto que poderá ser referenciado é que a literatura gay não pode confundir-se com literatura lésbica. O referencial da procura do masculino e do feminino são sujeitos a uma subversão diferente.
Daí que nos interesse submeter a uma breve apreciação de conteúdos uma literatura autêntica e assumidamente lésbica como a de Isabel de Sá a qual se entrelaça na pintura de Graça Martins que a inscreve numa linguagem pictórica.
Como se define a aventura lésbica na poesia de I.S. ( Isabel de Sá)? Na procura do ser amado fisica e espiritualmente., embora o encontro físico seja determinante, aquele instante que se fixa e cristaliza no ritual do namoro, do enamoramento. A aventura passa pelo espaço do interdito, o toque, a partilha de corpos no feminino. À intensidade da descoberta emocional e erótica alia-se o carácter transgressor das relações entre mulheres. Há mesmo o prazer da transgressão. Não há culpas, nem ressentimentos. Apenas o salto para a crítica do universo do masculino tido como normativo e legalista.
"Chegam em grupos/ mulheres-bonecas, apunhaladas./Parecem fugidas/ da catástrofe. Algumas/possuem elementos masculinos,/ exibem correntes quebradas"(in O Brilho da Lama, p. 13).
O corpo da amante lésbica tanto se inscreve no paradigma do efebo andrógino, como da mulher esplendorosa que é facilmente identificável com o imaginário heterossexual. Não há um modelo único de mulher.
Mas, apesar desta referenciação podemos dizer que o universo lésbico, do ponto de vista de fenómeno sociológico é inexistente em Portugal. É como se uma nuvem de invisibilidade preenchesse este universo. É um mundo solitário esse, sem nomeação de referente de género:
"Só o lume dos teus beijos rompe/ a treva onde a solidão nos mata./ Enrolamos a vida no escuro, / na semente de um amor atribulado" (p. 29, O Brilho da Lama).
A poesia de Isabel de Sá é uma poesia feliz? Penso que, apesar da nostalgia que nela se impregna, é uma poesia da totalidade e da plenitude. Até porque se increve naquele fenómeno que abordei há pouco da invisibilidade e portanto do anonimato:
"Depois do amor
deixavas o quarto na penumbra,
os lençóis usados, o perfume
dos corpos e o abraço.
Depois, noutro lugar da casa
as persianas quase fechadas,
a luz filtrada como num quadro
de Matisse, um poema
nalguma voz excepcional
e o cigarro, lentamente.
ainda um beijo perdido e tímido,
o aroma do gel de banho.
A porta fechava-se por fim
e nós íamos pelas ruas
ao anoitecer sentindo a atmosfera
de cada dia, a despedida
com a certeza doutro encontro"
in O Brilho da Lama, p. 38.
Os episódios lésbicos são descritos com suavidade, sem luxúria , quase imperceptíveis face ao universo mais tangível dos contextos onde se inscreve um erotismo mais evidenciado.
Será que a proposta lésbica, a mensagem que pretende passar pela voz das protagonistas, é de um branqueamento do erotismo mais agressivo dos universos gay e heterossexual? Para isso, seria interessante, numa próxima proposta de leitura, entrecruzar textos do erotismo gay e heterossexual. Mas isso passa por uma trabalho de mais fôlego, para além desta curta intervenção.
Na escrita lésbica de IS encontramos a preocupação de delimitar territórios de diferença e de interdito. Os espelhos são a marca da alteridade. Há sempre um interlocutor com quem se fala, alguém vagamente ausente a quem se dirige o discurso poético. Pois " Agora sou eu e não sou/ enleada nas cinzas do passado,/ no amor inútil que te dei" (p. 35, O Brilho da Lama).
A escrita lésbica não existe oficialmente. Algures a encontramos, pontualmente, neste ou naquele caso, na hibridez de uma escrita que não nomeia explicitamente o género do interlocutor. Poderemos falar com mais propriedade de uma escrita gay. Aí existem exemplos.
Ao branqueamento desta escrita lésbica corresponde o branqueamento a que toda uma sociedade vota o lesbianismo, no que tem a própria cumplicidade da "comunidade" lésbica, fragmentada por existências individuais discretas, com medo do "dedo acusador" da sociedade na qual se esforçam por integrar.
Vejamos o caso da escrita homossexual masculina e nesta vertente escolhemos a escrita paradigmática do poeta Al berto.
Ao contrário da escrita lésbica, a escrita gay é uma escrita que se apresenta sem branqueamentos e com sinais evidenciadores de uma orientação sexual que não se pretende esconder. A literatura do século XX encontra sobretudo no universo da poesia um vasto manancial de referências a esse mundo indizível e ainda escondido.
Em Al berto trilham-se os caminhos de uma homossexualidade referenciada, sem problemas de uma visibilidade acusadora. Veja-se o exemplo:
"Tangerina apalpa o corpo suado do adolescente, navegam sexos em minhas mãos, têm o aroma enjoativo das tâmaras, eis de novo o deserto onde esperaremos novos crepúsculos, a androginia, novas chuvas de luz e de treva" ( O Medo, p. 25).
O mundo da sexualidade abre-se em todo o seu esplendor, sem pruridos , nem medos de referenciação. É um universo aberto, quase espasmódico, e que se fixa em sinais identificadores da vertente gay: os corpos adolescentes, o vigor físico, a beleza, " invento-te no desassossego da viagem/ se preciso for dormirei mesmo durante o dia/ nos braços dum pastor adolescente que me ensinará/ a rápida vertigem da noite... a sodomia terna das cabras/ o remoto hábito de fazer promessas à beira dos corpos/ cometas-a-rodopiar"(p. 265, O Medo).
Esplendor e caos eis o que caracteriza este universo de Al berto, face à contenção extrema e ao etéreo de Isabel de Sá. Poderemos partir da premissa de um mundo eufórico para um mundo disfórico, de uma relação com a vida mais carnal e terrena para um sonho mais endógeno e claustrofóbico? Só estamos a partir das obras de Al berto e Isabel de Sá, não tendo em conta outras obras desse universo algo imperceptível que é a escrita de orientação sexual.


Cecília Barreira, in Indisciplinar a Teoria/Estudos Gays, Lésbicos e Queer, António Fernando Cascais (org.) , Ana Cristina Santos, Ana Luísa Amaral, Cecília Barreira, Francesca Rayner, Gabriela Moita, Henrique Pereira, Isabel Leal, Isabel Menezes, José Augusto Mourão, Miguel Vale de Almeida, Nuno Carneiro, Teresa Levy, Teresa Cláudia Tavares. Fenda Edições, 2004
  
JÁ ERA QUASE NOITE

De novo ao calor da lareira
e ouvindo uma sonata de Beethoven
a memória impõe-me cenas
que não posso rasurar.

A perigosa linguagem do teu corpo,
a beleza das mãos sobre a página
de um livro onde aprendias
o ofício, a fascinante química
dos produtos que ajudam a viver.

Depois já era quase noite
e tarde de mais para recuar.
Tudo estava perdido; a nossa honra,
o dia de estudo, o conceito de amor.



Isabel de Sá, in Erosão de Sentimentos, Editorial Caminho, Lisboa, 1997


AUTISMO, & etc, Lisboa, 1984