terça-feira, 31 de janeiro de 2017

A VERDADEIRA BIOGRAFIA: O PERCURSO


 A minha biografia
é evidentemente excepcional.
Tive um Pai uma Mãe
nasci numa Casa
fui à Escola da vila
depois do concelho.
Mudei de distrito para
continuar
e o caminho da instrução
concretizou-se na Faculdade
de Belas Artes.

Da infância passada em plena
Natureza lembro
a beleza das estações do ano
os rituais católicos
uma criada preferida
o instante em que aprendi a ler.
Chegou a adolescência
e com ela a certeza
Quero ser professora de Desenho.
Suponho que a Biblioteca
me salvou do desastre
interior.
Tinha dezassete anos
e requisitei “Uma Época
No Inferno” de um rapazito
chamado Jean - Arthur Rimbaud.

Na Biblioteca o empregado
olha-me sempre com reserva.
Eu estudava o quê?
Um dia livros de medicina
outro dia de poesia.
Então a ciência é poética?

A entrada na vida adulta
aliada à independência
e ao amor. O meu país
sofreu uma revolução. A democracia
não honrou ainda a sua palavra.
Cumpro deveres e não posso
usufruir de direitos proporcionais.
Eu e alguns milhares
neste sentimental canto
europeu sob um regime
semiditatorial
contribuo
para a sopa e os vícios
de alguns milhares de parasitas.

Mudando de assunto a pátria
é grande e a família também.
Para mim já passou
o meio século. Já foi o Pai
a Mãe e o Irmão mais velho.
Estou por cá à espera
certamente.

Não é provável que me entregue.
Conheci o galinheiro do confessionário
ajoelhei-me diante do altar
da virgem. Apaixonei-me.
Também recebi um terço de prata
no dia da comunhão solene.
E na hora exacta o óleo
perfumado do crisma.

Sempre que vou a uma missa
de corpo presente lá está o mesmo altar
com a deslumbrante
virgem. Entretenho-me
a recordar que já tive
quinze anos e também
adorei.

Depois a Páscoa a soturna
via sacra onde sofria
pela minha dor
e as beatas exibiam lágrimas
como dádiva pelo calvário
a que Jesus foi sacrificado.

Jesus era belo na sua passividade.
Os longos cabelos
o olhar suplicante
as pernas
o tronco liso
o ventre. Por fim
a entrega. Braços abertos
para o bem e para o mal.

Agora neste dois mil e seis
trata-se de insistir. Já é tarde
para quase tudo.
Os meus contemporâneos alimentam
uma curiosidade fétida.
A obra é minha. Faço
o que quero. Escondo
rasgo
mostro
transformo
entrego ao crematório
deixo aos herdeiros
ao vaticano
não deixo.

Nunca esmolei. Não fui pobre.
Mas os sinais da exclusão
o ódio é tão luminoso
que seria patético
psicotisante até
não articular sequer
estes versos
antes da eutanásia.




Revista Relâmpago nº18,  Abril de 2006

Eu ela e a escrita existimos desde o princípio. A escrita forma-se em mim, passa por ela e volta à minha pele num jogo sensual e íntimo. É um ser maleável aos gestos que executamos, vive e morre com os nossos impulsos. Quando se ausenta deixa sinais. Faz-nos confidências da sua vida errante, elabora sentimentos que não esperávamos que tivesse quando junta ao nosso, o seu instinto criativo. Assim, utilizo agora palavras que nunca pensei vir a escrever. Aceito-as porque as sei da espécie da personagem que habita connosco, conivente com os erros que cometemos.


Isabel de Sá, in Escrevo para Desistir, & etc, Lisboa, 1988

Realidade


Por causa de um livro
vieste ao meu encontro.
Era Verão, não sabias de nada
nem isso interessava. Palavras
amavam-se fora de ti,
no atropelo das emoções.
Lá chegaria a primeira vez,
o encontro apressado num lugar
público. Desfeito o erro
ao toque da pele, não sei
se havia medo, a paixão queria-me
no lugar exacto do teu coração.
Palavras enrolam-se na sombra
da vida a dor do sentimento.

Atingido o espírito, o tempo
da infância, a realidade. Em ti
a solidão que o prazer
não mata. Quero a beleza
dos versos revelada.
Alguns anos passaram sobre
a nossa história que não acabou.
A tarde envelhece e escrevo isto
sem saber porquê.


Isabel de Sá, in “Erosão de Sentimentos”

Escrevo para Desistir, & etc, Lisboa, 1988


O Festim das Serpentes Novas, Brasília Editora, Porto, 1982



DENTRO DAS IMAGENS
 
Os poemas têm veneno na boca.

Na estrada da minha vida
plantei a árvore
sem saber quem era.

Em que parte do planeta
há mais ódio? A matéria
erosiva transforma o corpo
e não há regresso. Não
restará um monte de estrume.

Em todo o lado
parece que o mundo em desordem
pouco a pouco enlouqueceu
e os homens atam a corda
à espera que aconteça.

São infelizes
mas não o suficiente.
Não sabem dizer
por que se esquecem de amar.




Isabel de Sá, in RESUMO, a poesia em 2009, edição Assírio & Alvim. Poemas escolhidos por José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queiros, Manuel de Freitas. (o poema de Isabel de Sá foi escolhido por Manuel de Freitas).
 

O Brilho da Lama, & etc, Lisboa, 1999


segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

NO DESENHO

A ruína atinge a superfície das palavras, abre no texto uma fissura de lume. Escrevo o que tu queres, a morte do dia. No desenho o rosto adormecido contrasta com o escuro traço da grafite. Também ele será pó ou alguma flor subterrânea. Mas ao espelho eu sou a personagem principal que se desloca na realidade imaginária dos meus livros. Escrever é triste e lembra a beleza do Outono.



NEGAÇÃO

Persigo uma exigência obscura, corro o risco de entrar na minha realidade. Exponho-me à vergonha de escrever, à erosão que isso provoca. Ouso desejar o suicídio das palavras, saber o que me resta. Na estranha paixão do esquecimento, na falta de superfície do eu que me reveste, escrevo porque digo sempre o mesmo. E não há nada de secreto, a escrita é apenas arte.
O tempo, essa brecha, abre no poema o nosso rosto, na pele se introduz e arruína. Se o meu espírito estiver destinado a afundar-se, se a potência do mal quiser o meu limite, serei a radical negação.

 
Isabel de Sá, in O Duplo Dividido, & etc, Lisboa, 1993 

O Duplo Dividido (seguido de Palavras Amantes e Poetas Suicidas), &etc,Lisboa, 1993



Fui à rua buscar a morte que andava desaustinada pelas paredes como um cão raivoso. Ofereci-lhe o braço, trouxe-a comigo, fi-la minha amante. Num leito de linho nos deitámos e em segredo me falou dias seguidos sobre a sua infância, a solidão debaixo da terra, o amor pela natureza. Explicou-me como acariciava os bichos comedores de cadáveres e dessa alegria maliciosa.
A morte passou a ter para mim muita importância. Comecei a vesti-la de alvas roupas, coser-lhe flores ao crânio, amando-lhe a face lívida, iniciando-a numa sensualidade sem fim.
Então, numa manhã a Morte sorriu mostrando nos seus lábios o seu carácter perfeito, isento de mesquinhez; beijou-me a boca, as pernas, o coração. Perturbou-me.
No meu interior países fervilharam, milhões de rostos se viraram à luz:
Tudo era claro como nunca sucedera.
Começara outra vida: dera-se a iluminação.



Isabel de Sá
 

In Esquizo Frenia, &etc, Lisboa, 1979.

1ºLivro de poesia. Editora &etc, Lisboa, 1979