quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Cecília Barreira - Um caso de escrita de orientação sexual em Portugal: A poesia de Isabel de Sá

 
 
 
Até agora nunca se analisou em Portugal a escrita de orientação sexual lésbica porque tudo se increve na feição abrangente de literatura feminina.
Penso mesmo que este silêncio e quase desqualificação da escrita de orientação gay e lésbica passa pela relativa invisibilidade deste fenómeno no panorama nacional. Assim, é mais fácil falar genericamente de uma escrita feminina do que de uma escrita lésbica.
Os pruridos podem ser levantados desde que se identifique um caso de literatura específica e se obtenha da respectiva pessoa autorização para se referir a sua escrita. Desde o pudor até a um certo sentido da invisibilidade, vale tudo.
Isabel de Sá é uma poetisa já consagrada pela crítica literária, mas penso que as metáforas a que a críptica crítica literária habitual não levam a que se descortine uma visão dos conteúdos e das mensagens implícitas dessa escrita.
Falando com a autora, ela considera a obra Em Nome do Corpo aquela em que a orientação de escrita é nitidamente homossexual. As ilustrações de Graça Martins são sugestivas deste universo de diferença. No caso da literatura gay também há um pesado silêncio sugestivo deste clima de insuspeitada maldição de nomeação da diferença.
Mas retornemos ao caso de Isabel de Sá, o mais representativo dessa literatura diferenciadora.
"Era uma mulher sumptuosa, de cabelos levemente ondulados (...) Aproximara de mim o gesto, vigoroso, ao prender-me a mão entre os seus dedos deixando uma impressão de queimadura"
(p.19 de Em Nome do Corpo).
Ou então,
" Morena, de cabelos e olhos negros, ela gostava de seduzir(...) Os corpos abandonavam-se à perturbação, sem cansaço, em gestos repetidos" (p. 21, idem.op.cit.)
A escrita gay e lésbica encontra-se numa situação de não nomeação, porque é inexistente. Existem estudos no mundo anglo-saxónico ou mesmo em França e Espanha sobre essa escrita, mas em Portugal não pode falar-se de tabu porque nem sequer é reconhecível.
Dizer-se que a escrita lésbica se inscreve numa escrita de mulheres ou do feminino, será uma possível abordagem? A escrita heterossexual de uma mulher poderá identificar-se com a escrita lésbica de uma outra? Não serão territórios muito díspares? O estatuto social que é adquirido pela `mulher inteira' , amante, mãe e mulher de corpo total, nada tem a ver com o estigma que se abate sobre esse fenómeno estranhamente intraduzível que é o da homossexualidade feminina.
Um outro aspecto que poderá ser referenciado é que a literatura gay não pode confundir-se com literatura lésbica. O referencial da procura do masculino e do feminino são sujeitos a uma subversão diferente.
Daí que nos interesse submeter a uma breve apreciação de conteúdos uma literatura autêntica e assumidamente lésbica como a de Isabel de Sá a qual se entrelaça na pintura de Graça Martins que a inscreve numa linguagem pictórica.
Como se define a aventura lésbica na poesia de I.S. ( Isabel de Sá)? Na procura do ser amado fisica e espiritualmente., embora o encontro físico seja determinante, aquele instante que se fixa e cristaliza no ritual do namoro, do enamoramento. A aventura passa pelo espaço do interdito, o toque, a partilha de corpos no feminino. À intensidade da descoberta emocional e erótica alia-se o carácter transgressor das relações entre mulheres. Há mesmo o prazer da transgressão. Não há culpas, nem ressentimentos. Apenas o salto para a crítica do universo do masculino tido como normativo e legalista.
"Chegam em grupos/ mulheres-bonecas, apunhaladas./Parecem fugidas/ da catástrofe. Algumas/possuem elementos masculinos,/ exibem correntes quebradas"(in O Brilho da Lama, p. 13).
O corpo da amante lésbica tanto se inscreve no paradigma do efebo andrógino, como da mulher esplendorosa que é facilmente identificável com o imaginário heterossexual. Não há um modelo único de mulher.
Mas, apesar desta referenciação podemos dizer que o universo lésbico, do ponto de vista de fenómeno sociológico é inexistente em Portugal. É como se uma nuvem de invisibilidade preenchesse este universo. É um mundo solitário esse, sem nomeação de referente de género:
"Só o lume dos teus beijos rompe/ a treva onde a solidão nos mata./ Enrolamos a vida no escuro, / na semente de um amor atribulado" (p. 29, O Brilho da Lama).
A poesia de Isabel de Sá é uma poesia feliz? Penso que, apesar da nostalgia que nela se impregna, é uma poesia da totalidade e da plenitude. Até porque se increve naquele fenómeno que abordei há pouco da invisibilidade e portanto do anonimato:
"Depois do amor
deixavas o quarto na penumbra,
os lençóis usados, o perfume
dos corpos e o abraço.
Depois, noutro lugar da casa
as persianas quase fechadas,
a luz filtrada como num quadro
de Matisse, um poema
nalguma voz excepcional
e o cigarro, lentamente.
ainda um beijo perdido e tímido,
o aroma do gel de banho.
A porta fechava-se por fim
e nós íamos pelas ruas
ao anoitecer sentindo a atmosfera
de cada dia, a despedida
com a certeza doutro encontro"
in O Brilho da Lama, p. 38.
Os episódios lésbicos são descritos com suavidade, sem luxúria , quase imperceptíveis face ao universo mais tangível dos contextos onde se inscreve um erotismo mais evidenciado.
Será que a proposta lésbica, a mensagem que pretende passar pela voz das protagonistas, é de um branqueamento do erotismo mais agressivo dos universos gay e heterossexual? Para isso, seria interessante, numa próxima proposta de leitura, entrecruzar textos do erotismo gay e heterossexual. Mas isso passa por uma trabalho de mais fôlego, para além desta curta intervenção.
Na escrita lésbica de IS encontramos a preocupação de delimitar territórios de diferença e de interdito. Os espelhos são a marca da alteridade. Há sempre um interlocutor com quem se fala, alguém vagamente ausente a quem se dirige o discurso poético. Pois " Agora sou eu e não sou/ enleada nas cinzas do passado,/ no amor inútil que te dei" (p. 35, O Brilho da Lama).
A escrita lésbica não existe oficialmente. Algures a encontramos, pontualmente, neste ou naquele caso, na hibridez de uma escrita que não nomeia explicitamente o género do interlocutor. Poderemos falar com mais propriedade de uma escrita gay. Aí existem exemplos.
Ao branqueamento desta escrita lésbica corresponde o branqueamento a que toda uma sociedade vota o lesbianismo, no que tem a própria cumplicidade da "comunidade" lésbica, fragmentada por existências individuais discretas, com medo do "dedo acusador" da sociedade na qual se esforçam por integrar.
Vejamos o caso da escrita homossexual masculina e nesta vertente escolhemos a escrita paradigmática do poeta Al berto.
Ao contrário da escrita lésbica, a escrita gay é uma escrita que se apresenta sem branqueamentos e com sinais evidenciadores de uma orientação sexual que não se pretende esconder. A literatura do século XX encontra sobretudo no universo da poesia um vasto manancial de referências a esse mundo indizível e ainda escondido.
Em Al berto trilham-se os caminhos de uma homossexualidade referenciada, sem problemas de uma visibilidade acusadora. Veja-se o exemplo:
"Tangerina apalpa o corpo suado do adolescente, navegam sexos em minhas mãos, têm o aroma enjoativo das tâmaras, eis de novo o deserto onde esperaremos novos crepúsculos, a androginia, novas chuvas de luz e de treva" ( O Medo, p. 25).
O mundo da sexualidade abre-se em todo o seu esplendor, sem pruridos , nem medos de referenciação. É um universo aberto, quase espasmódico, e que se fixa em sinais identificadores da vertente gay: os corpos adolescentes, o vigor físico, a beleza, " invento-te no desassossego da viagem/ se preciso for dormirei mesmo durante o dia/ nos braços dum pastor adolescente que me ensinará/ a rápida vertigem da noite... a sodomia terna das cabras/ o remoto hábito de fazer promessas à beira dos corpos/ cometas-a-rodopiar"(p. 265, O Medo).
Esplendor e caos eis o que caracteriza este universo de Al berto, face à contenção extrema e ao etéreo de Isabel de Sá. Poderemos partir da premissa de um mundo eufórico para um mundo disfórico, de uma relação com a vida mais carnal e terrena para um sonho mais endógeno e claustrofóbico? Só estamos a partir das obras de Al berto e Isabel de Sá, não tendo em conta outras obras desse universo algo imperceptível que é a escrita de orientação sexual.


Cecília Barreira, in Indisciplinar a Teoria/Estudos Gays, Lésbicos e Queer, António Fernando Cascais (org.) , Ana Cristina Santos, Ana Luísa Amaral, Cecília Barreira, Francesca Rayner, Gabriela Moita, Henrique Pereira, Isabel Leal, Isabel Menezes, José Augusto Mourão, Miguel Vale de Almeida, Nuno Carneiro, Teresa Levy, Teresa Cláudia Tavares. Fenda Edições, 2004
  

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